“uma luz no fim do
túnel”
Quando uma força, potencialmente descomunal, é
colocada em movimento e não sabemos aonde ela chegará, seu potencial pode transformar-se
em destruição somente, sem nenhum proveito, obviamente, para aqueles que a deslocaram;
a menos que esta seja a intenção. Imaginem um imenso caminhão estacionado no
topo de uma ladeira, bem íngreme, e alguém puxa seu freio de mão deslocando-o
ladeira abaixo. Se não tiver quem, em sua boleia, segure o volante, um desastre
ou fatalidade possivelmente acontecerá quando este veículo tiver seu
deslocamento interrompido.
Está na cara – pelo menos para mim – que falta
organicidade. Sinto falta de um corpo orgânico (desculpem-me o pleonasmo) capaz, de fato, de dar rumo ao
movimento; capaz de organizá-lo. É claro que um mínimo de coordenação
instrumental, demandada contingencialmente, existiu e foi hábil para,
rapidamente, colocar em prática aquilo que aos poucos foi se transformando em
um mar de moços e moças a procura de alguma coisa que, talvez, as gerações
passadas ainda não encontraram. Todavia, sinto que no caminhão em curso tem
algumas pessoas que, na boleia, ainda não aprenderam a dirigir – não tiraram
carteira ainda.
Obviamente que estou falando das manifestações
que nos últimos dias, a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, vêm abalando o
nosso país. Trata-se de um movimento espontâneo e socialmente muito pertinente;
no entanto, tudo que surge espontaneamente, também espontaneamente pode
desaparecer.
Tenho dúvidas se saberão dar o segundo passo;
ou seja, se suas lideranças (se é que existem) vão saber aproveitar a força
dada pelas ruas para encaminhar uma agenda cujas pautas de fato possam
conquistar o que pleiteiam (em verdade, a princípio, o que querem soa como
objetivos difusos cujo foco está pulverizado). Para isso, querendo eles ou não,
vão ter que se institucionalizar enquanto algum tipo de organismo da sociedade
civil. Não sei se estão dispostos; haja vista isto ser muito chato para muitos
desses jovens.
Não estou querendo com esta análise crítica –
feita às pressas, é verdade, já que ainda não contamos com a sabedoria que só o
tempo pode nos proporcionar – desqualificar o movimento; mas não posso deixar
de apontar algumas coisas que considero importante. Por exemplo, rejeitam
veementemente a política e o governo que temos; mas o que propõem para colocar
no lugar? Vou repetir, não quero desqualificar a validade deste movimento;
fazer isso seria concordar com tudo de errado que ele denuncia. As
manifestações, além de espontâneas, são deveras legítimas. Entretanto, espontaneidade
e legitimidade, mesmo sendo muito importantes, não bastam; é preciso mais.
Insistindo, organicidade e institucionalidade
seriam, a meu ver, os expedientes apropriados não só para organizá-los, mas,
principalmente, discipliná-los. E aí me desculpem se por acaso pareço ultrapassado,
mas são exatamente os organismos políticos que eles rejeitam, os partidos, os
sindicatos, as associações estudantis etc., os que detêm esses expedientes.
Há partidos e partidos. Não podemos colocá-los,
todos, em um mesmo saco. Existem os partidos fisiológicos e os ideológicos;
estes, em resumo, preocupados em defender ideias; e aqueles, no mínimo, zelosos
em defender os interesses econômicos dos indivíduos que os compõem. Dentre os partidos
ideológicos – simplificando muito (para resumir e não ficar extenso demais) –
existem os de direita e os de esquerda, cada um trazendo propostas,
evidentemente, diferentes. Sem querer também entrar em uma discussão de valores
entre direita e esquerda, há de se concordar, e os liberais que me perdoem, que
em geral foram os partidos de esquerda que no passado encabeçaram movimentos de
massa, populares e reivindicatórios, como os que estão acontecendo hoje – e a
História é testemunha.
Estou ciente de que dirão que este discurso é
ultrapassado e que este modelo de política não atende mais aos anseios da
maioria das pessoas; o que considerarei como sendo muito razoável. Sendo assim,
sou obrigado a levantar uma questão: se tal modelo político está inadequado
para os dias de hoje, qual modelo, então, o substituirá? Inclusive, o modelo de
representação política que hoje é hegemônico, pelo menos no mundo ocidental, é
o liberal, o da política representativa, calcado, formalmente, na existência do
voto, parlamento e constituição, e que ideologicamente, em termos de origem,
pertence ao campo da direita. [Questionável o que acabo de dizer. Se pensarmos,
por exemplo, na participação jacobina – a esquerda radical da Revolução Francesa
do final do século XVIII – na Assembleia criada pelos revolucionários
franceses, poderemos dizer, outrossim, que a origem da democracia liberal, representativa
e, portanto, indireta, também vem da esquerda. No entanto, além dos jacobinos
lutarem politicamente nas ruas com os sans-culottes, numa perspectiva de
democracia direta, no decorrer do século XIX em diante, foi a direita que passou
a utilizar o modelo liberal de se fazer política de Estado; enquanto o
socialismo, surgido com este nome exatamente no XIX e confiscando pra si o
titulo de esquerda, começava a questionar este modelo liberal de se fazer
política, propondo alternativas a ele.]
Seria
o caso, portanto, de questionarmos o modelo liberal de se organizar
politicamente a sociedade? Ou, em uma postura que considero perigosamente niilista,
questionaremos a própria política? A palavra “política” vem de pólis, que é “cidade” em grego. Na
Grécia antiga, política nada mais era do que a prática dos cidadãos de decidirem
diretamente sobre a organização de sua cidade; isto é, política era o cidadão,
junto a seus vizinhos, organizando o lugar em que vive (em cidades como
Esparta, por exemplo, esta política era oligárquica; enquanto que em outras,
como Atenas, era democrática – podemos, ainda, levantar sérios questionamentos acerca
do fato de quem podia exercer plenamente a cidadania nesta cidade era uma
minoria; de qualquer maneira, o modelo ateniense é muito interessante
historicamente). O que estes jovens estão querendo fazer é simplesmente isso:
interferir diretamente na organização das cidades em que se manifestam,
exigindo a eficiência dos serviços públicos das mesmas; ou seja, estão fazendo
política – ainda que muitos deles abominem esta palavra tão desgastada.
Quanto aos partidos políticos, também muito
rejeitados pelos manifestantes, temos que entendê-los, em se tratando do modelo
liberal e excluindo os fisiológicos, como “agremiações” que comportam
indivíduos e grupos que defendem interesses e ideias políticas em comum. Por
sua vez, esses interesses, teoricamente, são ideologicamente preocupados com a
coletividade e seu bem comum. Como o modelo político liberal trabalha com a
perspectiva, dentre outras, da representatividade, basta escolhermos o partido
em que as ideias melhor representam o que entendemos como sendo prioridade para
a sociedade em que vivemos. Se estes jovens partirem para um segundo passo no
avançar de seu movimento, passando a se organizar de fato, e criarem, por
exemplo, algum tipo de organização minimamente formal para encabeçar
negociações e ações junto às autoridades de Estado, estarão constituindo um “partido
político” sem que este, necessariamente, tenha como inicial a letra “P” –
irônico isso, não acham?
Concordo que há uma densa corrosão nas
relações, mediadas pela política e seus partidos, entre o Estado e a população.
Descrentes, as pessoas em geral parecem não se identificarem mais (e isso já
algum tempo) com as instituições que dizem respeito a essas relações; e isso
vem produzindo um acúmulo, represado, de insatisfações das mais variadas. O que
estamos presenciando nos últimos dias é a erupção destes profundos
descontentamentos. Esta corrosão, entretanto, não pode carcomer a nossa
capacidade, racional, de analisar a dimensão das coisas. De perceber o quão
perigoso é abolirmos de vez as instituições que, mal ou bem, ainda trazem
alguma coisa, de democracia legalmente representativa, capaz de evitarmos que
entremos, como no passado, em um estado de barbárie e selvageria. Querer achar
– e não são somente estes jovens que compartilham deste “achar”; parece
pertencer ao senso comum (ouvir um senhor, já com bastante idade, que estava em
uma das manifestações, dizer que ele não é partido nenhum, e acrescentou: “eu
sou Brasil!”) – que podemos abolir o conjunto institucional político
intermediador dos nexos entre o clamor das massas e aqueles – ou aquele (o que
é pior) – que em última instância tomam as decisões que organizam a nossa vida
na esfera pública, é no mínimo temerário.
Esse tipo de relação costuma trazer em si a
ideia, moral [prefiro a ética; mas esta é uma discussão muito longa], de que é
necessário alguém no governo, “com vergonha na cara” (!), apto a tomar as
decisões que são realmente indispensáveis, mas sem a participação desses
políticos que estão ali só para “se dar bem”. Tal pensamento (explícito ou não
por parte daqueles que nele depositam suas ideias políticas), no extremo, pode
vir a validar o discurso de que não é necessária a participação política de
todos; salvo em momentos, limites, em que é imperativa a manifestação das massas
na exigência de que apareça alguém “com vergonha na cara” e tome as tais
decisões imprescindíveis, ou para apoiar este “com vergonha” contra aqueles
“sem vergonha”. Isso, de relação direta entre massas e líder, cheira-me a
fascismo; e na sua versão mais cruel (se é que é possível ser mais cruel), a
totalitarismo.
Também podemos citar os muitos analistas que
dizem acreditar que, nos dias atuais (pelo menos a partir da década de 80 do
século passado), estaríamos vivendo uma espécie de natureza ou situação sociocultural
nova na história da humanidade: a pós-modernidade; em substituição à velha
modernidade. Para esses analistas, muitos dos valores oriundos da modernidade
inaugurada, sobretudo, com o iluminismo do século XVIII, o das “Luzes”,
estariam caducos; estariam ultrapassados e, por isso mesmo, incapazes de darem
conta do confuso mundo em que vivemos hoje. Esses valores modernos se resumem,
basicamente, na razão humana; em sua propensão de explicar o mundo e ordená-lo.
Preiteiam, esses intelectuais não modernos, que as coisas não funcionariam
assim hoje; que a razão não é soberana na orientação de nossas vidas; que as
coisas, na maioria das vezes, são dadas pelo acaso etc. As tentativas de
entendimento do mundo social por grandes padrões ou arquétipos explicativos
advindos da tradição moderna, segundo os pós-modernos, não seriam mais válidos.
A História, como disciplina, a título de ilustração, não existiria enquanto uma
ciência humana; sendo, na perspectiva pós-moderna, uma área da Literatura, já
que não haveria um modelo ou método de pesquisa racional que fosse capaz de reproduzir
o passado; o que produz o historiador seria uma narrativa somente.
Para a política, o que estamos definindo como “modelo
liberal” é tributário das práticas e valores moderno-iluministas. Portanto,
este modelo, na perspectiva analítica pós-moderna, não estaria mais adequado
para organizar a nossa sociedade, pois esta estaria, exatamente, vivendo uma natureza
ou situação sociocultural pós-moderna. (Para uma melhor apreciação do que seriam
os fenômenos da pós-modernidade e da modernidade, aconselho os seguintes
autores: Benedict Anderson, Ciro Flamarion Cardoso, David Harvey, Emir Sader, Eric
Hobsbawm, Fredric Jameson, Manuel Castells, Perry Anderson, Raymond
Williams, Renato Ortiz, Stuart Hall e Zygmunt Bauman).
Há também as análises, críticas contra o
pensamento pós-moderno, que enquadram muitos dos novos movimentos políticos, contrários
às forças que representam o capitalismo, como vinculados às “esquerdas pós-modernas”,
pois, em resumo, rejeitam, em suas ações, a influência de modelos cujos valores
são considerados como pertencendo à tradição moderno-iluminista. Tais movimentos
trariam em si uma espécie de esquizofrenia, uma irracionalidade, vazia, que
seria inócua, portanto, contra as forças que pretendem combater, já que lhes
faltam os mecanismos racionais da tradição moderna etc. Talvez, os atuais
movimentos que vemos hoje nas ruas do Brasil sejam desta tal “esquerda
pós-moderna”. (Também para uma melhor apreciação desta crítica a esta esquerda,
aconselho o livro, publicado pela Jorge Zahar e organizado por Ellen Wood e John Foster, Em defesa
da História: marxismo e pós-modernismo.
Especialmente a Introdução, de Aijaz Ahmad, “O que é a agenda pós-moderna”).
Voltando à questão do abandono, na política,
das instituições que mediam as relações entre Estado e povo, ao contrário do
que possa parecer, não estou querendo dizer que, necessariamente, o atual
movimento, encabeçado a partir de São Paulo pelo MPL (Movimento pelo Passe
Livre), vá descambar em formas de relações sociais de poder semelhantes ao
fascismo; só acho que precisamos estar atentos... Bastar olharmos a História...
Vi pela televisão, por exemplo, muitos jovens, apartidários, impedindo – até
sendo violentos – a participação de outros jovens que carregavam bandeiras, vermelhas,
de partidos de esquerda, como PSTU, PT, PSOL, PCdoB etc.; agindo, portanto,
como a polícia, que muitas das vezes é truculenta e tenta impedir que realizem
democraticamente suas passeatas e reivindicações.
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, todos
sabemos, alguns jovens se aparelharam organicamente para lutarem contra um
regime opressor, violento (sobretudo contra as classes populares; mas também
contra a classe média, quando seus filhos mais radicais ousavam contrariar o
regime) e a serviço do grande capital, nacional ou estrangeiro. Muitos desses
jovens pagaram com a própria vida; mas contribuíram para que na década de 80 do
mesmo século o Brasil reencontrasse a democracia. Os partidos rejeitados acima,
em certa medida, são “herdeiros” legítimos desses jovens, e precisam, por
conseguinte, serem respeitados (sem contar que a juventude que compõe estes
partidos não está usando máscaras; ao contrário de muitos jovens partidários do
apartidarismo, sejam eles “pacifistas” ou “baderneiros” – o anonimato, alguma
das vezes, infelizmente, é um denominador comum entre estes dois grupos).
São muitas as variantes para se tentar dar
conta de uma análise que ainda está por começar (e os intelectual das mais
variadas especializações apressam-se, assim como eu, a apresentar seus
pretenciosos diagnósticos nos meios de comunicação); afinal o movimento talvez
esteja dando os seus primeiros passos. Acredito que o saldo – apesar do
descontrole de uma minoria (mas isso não é inusitado, não é um privilégio único
deste movimento) – será positivo. Está mais do que claro que nas próximas
edições de seus livros didáticos de História, as editoras corram para incluir
em suas páginas as manifestações ocorridas nestes últimos dias. Os professores
de História do 3º ano do ensino médio – sobretudo dos cursinhos preparatórios –,
com certeza, já começam a mencionar, ainda imprecisos e com certo receio, a
possibilidade destes episódios já serem cobrados na prova do ENEM deste ano. E
aí não tenho dúvida que uma das estratégias está sendo compará-los – em um link passado/presente – a semelhantes
eventos que no passado de nossa História causaram, igualmente, impactos
parecidos.
Ao escrever o final deste último parágrafo,
ocorreu-me que, pelo menos, dois outros movimentos históricos no Brasil guardam
muitas semelhanças com as atuais manifestações urbanas [mentira, já estava
pensando nestes episódios antes mesmo de começar a escrever, só estava
esperando o momento exato de encaixá-los; trata-se, portanto, de um recurso
retórico meu]: A Revolta do Vintém, na cidade do Rio de Janeiro de 1879
(existiu outra revolta com o mesmo nome em Curitiba pelos idos de 1803; mas
esta foi um pouco diferente – apesar ter tido, da mesma maneira, muito
distúrbios), e A Revolta da Vacina, também no Rio de Janeiro, só que no
ano de 1904 – portanto, uma no Império e outra na República.
Talvez comparar o que está acontecendo hoje com
o movimento de 1879 seja o mais indicado, pois novamente trata-se da elevação
do preço de embarque em um transporte público (ontem o vintém, os vinte réis
dos bondes puxados por burros, hoje os vinte centavos); no entanto, ambas as
revoltas são muito semelhante à atual “Revolta da Tarifa”. As três
manifestações têm em comum, notadamente, a violência exagerada da polícia, o
descontrole de elementos que “vandalizam” o patrimônio público e privado, a
espontaneidade e a rejeição à “política formal”.
Gostaria de ressaltar, no entanto, que o que
entendo como sendo o mais relevante a ser considerado como “semelhança”, não
foi o objetivo – ou o título – que a primeira vista identifica cada um dos
movimentos. Vejamos a Revolta da Vacina, por exemplo. O estopim foi, sem sombra
de dúvidas, a lei da obrigatoriedade da vacina, proposta por Oswaldo Cruz e
determinada pelo governo da “República Velha”; porém, a população menos
favorecida da cidade estava, já há muito tempo, insatisfeita com um governo
oligárquico e que não lhe abria nenhum canal de negociação política para que
pudesse reivindicar suas necessidades básicas em termos de serviços públicos,
como escolas e hospitais, ou mesmo coisas mais amplas, com leis trabalhistas
etc. – sem contar que a Reforma Urbana do Rio de Janeiro, de Rodrigues Alves e
Pereira Passos, embelezara a cidade sem, entretanto, beneficiar os mais pobres.
Logo, a lei da obrigatoriedade foi só um pretexto; uma gota d’água em um copo
já transbordando de desagrados vexatórios e insuportáveis. Hoje é a mesma
coisa; o caso dos vinte centavos, na verdade, é somente um pretexto para que
estes jovens gritem: BASTA!...
Além destas intercessões, entretanto, verifico que
existem algumas diferenças importantes. Primeiramente, creio que uma das
principais diferenças seja o elemento de classe. Nas duas primeiras, o grosso
dos manifestantes nas ruas era oriundo das classes populares (mesmo que na
Revolta do Vintém as chamadas “classes médias” do Império tenham apoiado o
movimento, quem realmente enfrentou as foças da ordem no centro da cidade foram
os contingentes mais pobres). Já nas atuais manifestações contra as autoridades
governamentais, percebo, posso está enganado, entre aqueles que compõem o grupo
“pacifista” (em oposição àqueles que a mídia tem chamado de “vândalos”) um
maior número de jovens de classe média (o que não descredencia o movimento como
válido); com algumas exceções, é claro.
Toco agora num ponto que considero nevrálgico
demais; precisando, portanto, ser tratado com muito cuidado, para não correr o
risco de estar sendo levianamente preconceituoso [e é por isso que estou
abrindo este novo parágrafo], como tenho visto por parte de alguns elementos
dos meios de comunicação, que, no calor dos acontecimentos, deixam escapar seus
“viciados” valores de classe. Em se tratando dos chamados “vândalos” ou “baderneiros”,
percebo que a composição social é um pouco mais heterogênea. Tenho percebido elementos
que me sugerem ser das classes médias misturados a outros das classes populares;
menos nos fatos de violência, roubo e depredação ocorridos nas manifestações na
Barra da Tijuca. Nestes, tudo parece indicar que foram adolescentes pobres dos
bairros da Gardênia Azul e Cidade de Deus. Esse segundo grupo heterogêneo dos
que se consideram “apolíticos” (o primeiro seria “os pacifistas”), “os vândalos”,
surgem do nada e agem, a princípio, desordenadamente, sem uma liderança orientadora
e constante, como que seguissem um sentimento violento de destruição a tudo que
pareça pela frente (pode ter também, neste grupo menor de pessoas, algum tipo de violência com objetivos políticos e orquestrada por jovens de organizações de extrema direita, como os neonazistas, por exemplo).
O comportamento desses nossos “vândalos” é
muito parecido ao manifestado em Paris, no ano de 2005, por jovens de suas periferias;
que, em flagrantes acessos de uma ira incontrolável, invadiram as ruas da
capital francesa incendiando carros, destruindo lojas etc. Esses “vândalos”
franceses, em sua maioria, descendem de imigrantes oriundos das ex-colônias
francesas, sobretudo africanas; e, portanto, além de pobres, são negros e
mestiços.
Lembro-me perfeitamente que na época intelectuais
de fama internacional, como sociólogos, dentre outros, analisavam que tais manifestações
espontâneas, violentas e não liderada por partidos, eram resultado de uma aguda
e colossal insatisfação a tudo que representa a política formal da França e a prosperidade
da classe média branca daquele país. A razão desta insatisfação se deu por um
sentimento, pertinente, de que a classe média francesa e sua política excludente
não os representam, não se preocupam com eles e os renegam a um limbo periférico,
que além de geográfico é também econômico, social e cultural. Então porque
preservariam aquilo que não lhes diz respeito; mas do que isso, não os respeita,
não os protege, não os ajuda, ignora-os e lhes prejudica (basta ver como a
polícia parisiense os trata). Podemos dizer – e é o que se costuma dizer com
muita propriedade – que se trata também de jovens sem perspectivas para o
futuro e que por isso agem como se nada tivessem a perder (e como resultado de
políticas neoliberais, não têm mesmo).
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, famoso por
suas versões “Líquidas” da Arte, do Amor, do Tempo, da Modernidade, da Vida, do
Medo etc., em entrevista ao Jornal O Globo, em Agosto de 2011, disse, a
respeito de distúrbios semelhantes ocorridos em Londres, cujo foco foi o saque,
por parte de jovens, em lojas de marcas e grifes importantes, que o ocorrido
foi uma espécie de “motim de consumidores excluídos”. Sintetizando (e
interpretando de forma, digamos, um pouco “livre” a análise de Bauman), em uma
sociedade, individualista, que valoriza sobre maneira uma cultura do
consumismo; mas, ao mesmo tempo, com políticas econômicas que potencializam a
exclusão, jovens socialmente à margem deste consumo foram às “compras” a sua
maneira, que prescinde dos valores morais construídos pela sociedade moderna. O
parecer de Bauman pode ser agregado, talvez com algumas ressalvas, ao mosaico
de explicações sobre o comportamento, específico, de alguns poucos jovens
brasileiros nos distúrbios dos últimos dias, especialmente nos ocorridos na
Barra da Tijuca.
Temos, para o exame dos problemas que as convulsões
sociais provocadas por nossos jovens estão nos causando, muitas possibilidades.
Falta de perspectiva para o futuro, em função de que a sociedade não estaria
oferecendo a possibilidade de existência desta perspectiva; jovens sócio e
economicamente excluídos de consumirem em uma sociedade cujos principais apelos
midiáticos são para o consumo; desprezo a um modelo político que acreditam que não
os representa; uma intensa insatisfação com a situação do pais (muitos político
corruptos, serviços públicos ruins, passagens caras etc.), que no seu extremo
se apresenta como uma raiva incontrolável e destruidora; a existência, hoje, de
uma “condição pós-moderna” (esta explicação é a que menos me contempla); os
atuais movimentos seriam da “esquerda pós-moderna” (e se forem, não acredito na
capacidade de transformação social desta esquerda) etc., etc., etc...
A dificuldade, no entanto, que se apresenta aos
nossos olhos encontra-se exatamente nos primeiros vocábulos do parágrafo acima:
“problema”. Não podemos encarar tais manifestações como um “problema”; nem
mesmo os quebra-quebras ocorridos. Tenho consciência de que era melhor que as amostras
de “vandalismo” não tivessem acontecido; mas, como já adiantei mais acima,
infelizmente não tem jeito – é mesmo impossível que não tivessem acontecido.
Todas as grandes manifestações físicas e populares, no tempo/espaço, inclusive
as revoluções, não ocorreram sem aqueles indivíduos e grupos que, mesmo sendo
minorias, saem do controle e assustadoramente exageram em suas ações violentas. Aproveitando-me de uma figura de linguagem já explorada por um eminente técnico
de futebol brasileiro (senão me engano), não dá para fazer uma omelete sem
quebrar os ovos...
Esses jovens, em sua maioria, estão nos dando
uma lição. Mesmo com a minoria “vândala” e com o sentimento apolítico da
maioria (e quiçá, especularei, estes jovens não tenham lideranças formais por
exatamente temerem que estas se tornem, com o tempo, devido à popularidade que
a liderança pode lhes proporcionar, políticos tradicionais), vejo luz no fim do
túnel. Pego o exemplo de minha filha, que foi às passeatas no centro do Rio sem
pedir minha autorização, mesmo sendo menor-de-idade. Confesso que o meu
primeiro sentimento foi o de pai, e pensei em proibi-la; mas o cidadão político
e professor de História, que inclusive foi lembrado desta condição pela própria
filha, acabou falando mais auto (e o pai ficou com o coração na não de tanta
preocupação – lembrei-me da peça do Brecht, “A Mãe”, em que em tempos
revolucionários uma mãe é contra a revolução porque teme pela integridade
física de seus filhos. Nesta peça, a mãe é a vilã paro o autor; entretanto, o
público, identificando-se com o sentimento materno, a elege como heroína).
Minha filha, como a maioria de sua geração, nunca
tinha se interessado muito por política; mas ultimamente a coisa tem mudado
lentamente. Disse, nas últimas eleições, que simpatizava, mesmo não sendo
filiada, com o Freixo do PSOL, e me criticou por não pensar a mesma coisa. E,
no que diz respeito aos atuais episódios no centro do Rio, ela escreveu uma
redação no cursinho pré-vestibular sobre o que intensamente vivera nas manifestações
de rua, que foi lida pela professora para toda a turma. Minha filha tá toda
orgulhosa. Pela redação? Também. Mas especialmente por sua participação, decisiva,
na História do país. Sim, vejo luz no fim do túnel...