Uma verdadeira Fênix;
toda a vez que muitos pensam que está prestes a morrer, renasce das cinzas.
Estou falando da Igreja Católica, e poderia enumerar muitos casos que ilustram
o que acabei de afirmar, como, por exemplo, aquilo que ficou conhecido nos EUA,
de finais dos anos 60 do séc. passado, como Renovação Carismática Católica ou
simplesmente Movimento Carismático; com práticas semelhantes às das igrejas
protestantes pentecostais, onde a Eucaristia preside quase tudo em importância,
se recebe o Espírito Santo e se “fala em línguas”, dentre outras coisas.
Aqui no Brasil tal movimento entra um pouco depois, na
década seguinte de seu surgimento norte-americano; ou seja, no início dos anos
70, chegando ao auge com os clérigos cantores, como o Padre Marcelo e
companhia. Na época, empiricamente, percebi que o Movimento Carismático estava
desalojando, em termos de importância, a Teologia da Libertação – pelo menos na
América Latina, de onde é originária. Com sua opção política e ética, de
esquerda, pelos pobres (influenciada por uma pedagogia teológica da ação, pelo
Concílio Vaticano II (1962-65), pela Segunda Conferência Geral do Episcopado
Latino Americano, em 1968 na cidade de Medellín, etc.), essa tendência
teológica foi acusada de materialista, marxista e tudo o mais que o pensamento
conservador rejeita. A cúpula da Igreja em Roma reagiu; e sob a acusação de
substituir o pecado individual pelo institucional, coletivo e sistêmico (por
exemplo, um Estado que, com sua política econômica a serviço dos mais ricos,
promove a pobreza, é uma instituição pecadora), puniu os padres que pregavam
coisas como “a luta-de-classes” em seus sermões. Para a Igreja, parece que não
interessava muito que seus religiosos fincassem os pés na realidade concreta,
pois seu objetivo é espiritual; e assim, padres carismáticos, voltados para o
interior metafísico daquilo que produziria a fé, eram mais úteis ao rebanho –
não discutamos a pobreza da carne e sim a da alma.
Pois é, a nossa Fênix – é óbvio – tem uma História. Já foi,
de início, uma religião de escravos no Império Romano; e deste herdou, por
quase toda a Europa Centro-Ocidental do medievo, um poder que se não era de
Estado se fazia presente em tempos de muita descentralização política. A Igreja
medieval funcionava como uma grande “Senhora Feudal”; mas não saiu incólume da
crise do feudalismo e do renascimento comercial urbano do final da Baixa Idade
Média. Nos primeiros anos da Época Moderna, homens como Lutero e Calvino lhe
subtraiam os fiéis. Claro que reagiu. Medidas foram tomadas no Concílio de
Trento e o Papa oficializou, transformando em ordem, a Companhia de Jesus,
criada por Ignácio de Loiola após as Cruzadas.
Os jesuítas eram novatos enquanto ordem, se comparados a
franciscanos, dominicanos e beneditinos; porém, levavam para a Igreja a fama de
sérios, dedicados, estudiosos da palavra e zelosos da hierarquia, e por isso ficaram
conhecidos como “os soldados de batina”. É claro que a oficialização da nova
ordem era uma estratégia de moralização da Igreja, envolvida em escândalos
relacionados às mais variadas práticas de “simonia”, como a venda – e não a
prática – de indulgências. A partir de então, com sua obediência
incondicional à Santa Sé, trouxe para si a responsabilidade, como missionária,
da catequese para o “Novo Mundo”. No caso do Brasil do século XVI, em São
Paulo, foram os jesuítas que, por exemplo, fundaram a nossa primeira escola
(foram tão importantes no mundo lusitano, que o Marquês de Pombal, em meados do
séc. XVIII – o das “Luzes” –, na busca da modernização da estrutura política e
econômica de Portugal, os expulsou de todo o território português, no reino e
no além-mar, sob o pretexto de serem arcaicos etc.).
Alguns séculos se passaram; e a Igreja de Roma, mais uma
vez, se vê envolta em escandalosas denúncias, como os casos infames de
pedofilia. E um papa germânico, sisudo, possuidor de, não menos, quatro
doutorados não é capaz – ou pelo menos não o quis – de moralizar a igreja. Não
se trata somente de moralização; temos também o fato de o mundo ter mudado
muito. Uma individualidade mais acentuada (quiçá para além do que previram os
mais radicais liberais de outrora) libera o indivíduo para ser o que queira ou
acredita ser; não se constrangendo mais com o que a sociedade diz ou quer que
ele seja; e a Igreja não está atenta a esta mudança. Ou se está, não aceita;
haja vista, por exemplo, se pronunciar contra o casamento gay.
E o Papa germânico renuncia (botando mais lenha na fogueira
com seu misterioso dossiê). A escolha do novo Pontífice foi pautada por, no
mínimo, estas duas exigências; um misto de moralização e modernidade (ainda que
nem todos os cardeais a queira). Uma autoridade eclesiástica que consiga
conciliar, ao mesmo tempo, o punho forte contra os desmandos dos escândalos
sexuais e de corrupção, de um lado, e a mão estendida aos novos ventos
contemporâneos (modernos ou pós-modernos), de outro.
Creio que a escolha não recaiu em nenhum nome que
contemplasse, de fato, estas duas necessidades – em conjunto ou isoladas. Mais
uma vez a Igreja recorreu, como no século XVI, àqueles que de fato pode contar:
os jesuítas; eles, de fato, para a Igreja, são “pau para toda a obra”. A
escolha do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, a meu ver, significa
escolher alguém disposto a lutar pela Igreja, pela sua defesa, e com as características
de luta da Companhia de Jesus: disciplina, lealdade, moralidade, o ensino
religioso e a catequese conquistando mais almas em momentos de fragilidade da
Igreja (no passado, acuada pelas críticas e denúncias, verdadeiras, dos
protestantes; hoje, pressionada pelas exigências e necessidades contemporâneas,
outrossim verdadeiras, da opinião pública).
Não entrarei na polêmica sobre seu passado de conivência ou
não com a ditadura argentina, já que uma das mais importantes e intensas
acusações vem de um colaborador do Governo Kitchener, do qual o Papa Francisco
se mostrou desafeto; portanto, pode, nesta acusação, estar pesando algum tipo
de parcialidade, e não quero ser leviano. (Apesar de que me parece consensual,
para muitos – não a maioria; mais um número não desprezível –, de que pelo
menos a omissão, quantos aos crimes da ditadura argentina, não seria, para o
atual Francisco, uma injusta afirmação). Polêmicas a parte, o fato é que o Papa
jesuíta, como era de se esperar, está se saindo muito bem. Mostra-se exatamente
como “o oposto” do que fora
Ratzinger (na verdade sem o ser;
nem um nem outro querem mudanças radicais na Igreja); é simpático, piadista,
bem humorado, beija criancinha na praça etc. – e isso não importando muito que
esteja se expondo ao perigo; imaginem um atentado de um extremista qualquer que
venha assassiná-lo, mergulhará não só a igreja mais todo o mundo em uma
profunda crise; ele não pode se esquecer que sobre seus ombros pesam muitas
responsabilidades.
Joga para a torcida (e talvez esteja sendo sincero), afinal
é comum entre os populares que seus líderes apareçam sem “frescuras”; alivia o
núcleo duro da cúpula episcopal, pois tudo indica que reformas radicais não
virão; e responde aos anseios dos setores “médios” da “opinião pública” internacional
com seu posicionamento – correto (diga-se passagem) – contra a pedofilia na sua
Igreja. No entanto, mais uma vez, quiçá, a Igreja perde a oportunidade de
entrar no séc. XXI, quando este clama pelos direitos das minorias que se
autoproclamam em novas identidades subjetivas – e por isso são agredidas física
e moralmente. Já perdera a oportunidade, na segunda metade do século passado,
de se sintonizar com as tendências progressivas da “sociedade mundial” do
Ocidente, quando existia uma preocupação um pouco mais acentuada em se criticar
os saldos negativos, na conta dos trabalhadores, provocado pelo Capitalismo
(pelo menos até o início da “década perdida”).
Em termos das ideias mais profundas, além de ações meramente
pragmáticas, penso que os mais importantes teólogos do Cristianismo, sobretudo católicos,
desde o medievo, pelo menos (e neste período a Teologia continha a Filosofia, e
não o contrário, como hoje), acompanhem, pari passu, a
produção filosófica de maior importância no Ocidente. Creio, igualmente, que
neste sentido, o Cristianismo supere as outras duas grandes religiões
concomitantemente confessionais e monoteísta, com as quais tem parentesco, o
Judaísmo e o Islamismo. Começando do começo, na Idade Média, duas grandes tendências do
pensamento teológico católico dividiram as atenções de seus fiéis (e cada uma
delas cheias de variáveis). Na Alta Idade Média temos a continuidade dos
primeiros passos, dados por pensadores do Império Romano, nesta direção: a Patrística, como é conhecida por
muitos. Nesta tendência destaca-se Santo Agostinho, em cuja obra se percebe uma
grande influência do idealismo platônico, como era de se esperar de um
pensamento religioso; sendo que, em resumo, a Ideia de Platão para Agostinho é
Deus – daí a concepção, absoluta no século XVI por Calvino, da predestinação
para a salvação da alma. O apóstolo mais consultado não poderia ser outro do
que Paulo, que não conviveu com Jesus quando este era vivo e mesmo assim deste
recebeu o chamado (“Por que me persegues?...”).
Na Baixa Idade Média temos a Escolástica e, obviamente, sou
obrigado a me referir a São Tomás de Aquino. Neste autor percebo um certo traço
peculiar no que, pretensiosamente, denominarei de “a tradição materialista do
pensamento filosófico” – como antítese à “tradição idealista do pensamento
filosófico” (também uma pretensão minha). Concebo a primeira como vindo, em
suma, de Aristóteles, São Tomás de Aquino, Locke etc., e chegando ao seu
expoente máximo, Marx. A segunda, também em um resumo muito precário e
esquemático, teria origem em Platão, Santo Agostinho, Calvino, Descartes, Kant,
Hegel (sendo que este, só para confundir, em muito entusiasmou a Marx) etc.
Como conciliar – esta é a “peculiaridade” – materialismo e fé religiosa? Tomás
de Aquino conciliou, com sua concepção oposta a da predestinação. Para ele, e
todos os outros escolásticos, a salvação da alma vem da combinação de duas
coisas: ter Fé e ser um Bom Cristão. Este último
aspecto significa praticar “boas obras” (caridade para com os mais pobres –
segundo os ensinamentos de um determinado Cristo, isso depende de quem lê –,
não praticar o lucro e sim o “preço justo” no comércio etc.); e quanto à fé,
diferentemente do que pensam Agostinho e Calvino, é uma escolha do indivíduo e
não uma dádiva de Deus.
Ambas as tendências expressavam o que se vivia nos contextos
de onde eram originárias, e, dialeticamente, também influenciaram estes
contextos. A reclusão feudal da Alta Idade Média não poderia fornecer outro
ambiente filosófico do que o da contemplação quase que irrestrita ao mundo das
ideias; já o intenso renascimento comercial urbano, advindo, como já disse mais
acima, da crise do feudalismo que experimentava a Baixa Idade Média, colocou o
homem europeu em contato com uma realidade, concreta, prenhe de vida social; e
o pensamento intelectual, científico, artístico e teológico, não poderia ficar
imune a isso. Aquino, neste contexto, percebeu que a Igreja tinha obrigações
sociais (talvez não com este linguajar contemporâneo que uso – desculpem-me se sou
anacrônico), e fez uma opção ética no seu entendimento sobre o que é religião,
conciliando fé e razão, dando ao cristão o princípio da Vontade, da Ação etc.
Entendo isso como um avanço no pensamento Cristão; que retroagiu, contudo, nos
primeiros anos da Época Moderna com algumas das concepções protestantes. Para
Lutero, somente a Fé salva – descartando as preocupações sociais das “boas
obras”; e para Calvino, pior ainda, os homens são escolhidos por Deus para
serem salvos ou não; retirando-lhes a Vontade, racional, e a Ação, ética.
Calvino, de uma família de comerciantes franceses, diz que os sinais de que
Deus nos escolheu para a Salvação são: a) se apresentamos fé (e ele inverte as
coisas, pois não escolhemos ter fé, é Ela que nos escolhe) e b) se temos lucro;
que por sinal, para ele, “é divino” (para Aquino é pecado). Os sinais da
danação da alma, dentro desta lógica calvinista, se dão no oposto: pobreza e
falta de fé.
Jorge Bergoglio fez uma
homenagem a Francisco de Assis; homem que viveu no início da Baixa Idade Média
e que rompeu com os poderes econômicos e políticos instituídos em sua época,
optando pelos valores da Natureza, plantas, animais e o homem como parte disso
tudo. Sua revolta, radical, era contra ao abandono destes valores; e no caso
dos homens, a pobreza que os atingia, tanto da alma quanto do corpo. Não foi à
toa que Francisco criou um ordem mendicante, os franciscanos. Tomás de Aquino
não era franciscano, mas foi dominicano, outra ordem mendicante criado quase na
mesma época por São Domingos. O Papa Francisco se disse a favor dos pobres; que
bom. Mas isso não pode ser somente um discurso oficial e estratégico da Igreja;
é necessário também que venha a agir concretamente contra a pobreza, escolhendo
bem os exemplos que a própria História do Cristianismo pode lhe fornecer.
Francisco de Assis e Tomás de Aquino, no mínimo, seriam um bom começo.