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Valter Mattos

Valter Mattos
Ouvindo...

domingo, 23 de junho de 2013

A Revolta da Tarifa

“uma luz no fim do túnel”

Quando uma força, potencialmente descomunal, é colocada em movimento e não sabemos aonde ela chegará, seu potencial pode transformar-se em destruição somente, sem nenhum proveito, obviamente, para aqueles que a deslocaram; a menos que esta seja a intenção. Imaginem um imenso caminhão estacionado no topo de uma ladeira, bem íngreme, e alguém puxa seu freio de mão deslocando-o ladeira abaixo. Se não tiver quem, em sua boleia, segure o volante, um desastre ou fatalidade possivelmente acontecerá quando este veículo tiver seu deslocamento interrompido.
Está na cara – pelo menos para mim – que falta organicidade. Sinto falta de um corpo orgânico (desculpem-me o pleonasmo) capaz, de fato, de dar rumo ao movimento; capaz de organizá-lo. É claro que um mínimo de coordenação instrumental, demandada contingencialmente, existiu e foi hábil para, rapidamente, colocar em prática aquilo que aos poucos foi se transformando em um mar de moços e moças a procura de alguma coisa que, talvez, as gerações passadas ainda não encontraram. Todavia, sinto que no caminhão em curso tem algumas pessoas que, na boleia, ainda não aprenderam a dirigir – não tiraram carteira ainda.
Obviamente que estou falando das manifestações que nos últimos dias, a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, vêm abalando o nosso país. Trata-se de um movimento espontâneo e socialmente muito pertinente; no entanto, tudo que surge espontaneamente, também espontaneamente pode desaparecer.
Tenho dúvidas se saberão dar o segundo passo; ou seja, se suas lideranças (se é que existem) vão saber aproveitar a força dada pelas ruas para encaminhar uma agenda cujas pautas de fato possam conquistar o que pleiteiam (em verdade, a princípio, o que querem soa como objetivos difusos cujo foco está pulverizado). Para isso, querendo eles ou não, vão ter que se institucionalizar enquanto algum tipo de organismo da sociedade civil. Não sei se estão dispostos; haja vista isto ser muito chato para muitos desses jovens.
Não estou querendo com esta análise crítica – feita às pressas, é verdade, já que ainda não contamos com a sabedoria que só o tempo pode nos proporcionar – desqualificar o movimento; mas não posso deixar de apontar algumas coisas que considero importante. Por exemplo, rejeitam veementemente a política e o governo que temos; mas o que propõem para colocar no lugar? Vou repetir, não quero desqualificar a validade deste movimento; fazer isso seria concordar com tudo de errado que ele denuncia. As manifestações, além de espontâneas, são deveras legítimas. Entretanto, espontaneidade e legitimidade, mesmo sendo muito importantes, não bastam; é preciso mais.
Insistindo, organicidade e institucionalidade seriam, a meu ver, os expedientes apropriados não só para organizá-los, mas, principalmente, discipliná-los. E aí me desculpem se por acaso pareço ultrapassado, mas são exatamente os organismos políticos que eles rejeitam, os partidos, os sindicatos, as associações estudantis etc., os que detêm esses expedientes.
Há partidos e partidos. Não podemos colocá-los, todos, em um mesmo saco. Existem os partidos fisiológicos e os ideológicos; estes, em resumo, preocupados em defender ideias; e aqueles, no mínimo, zelosos em defender os interesses econômicos dos indivíduos que os compõem. Dentre os partidos ideológicos – simplificando muito (para resumir e não ficar extenso demais) – existem os de direita e os de esquerda, cada um trazendo propostas, evidentemente, diferentes. Sem querer também entrar em uma discussão de valores entre direita e esquerda, há de se concordar, e os liberais que me perdoem, que em geral foram os partidos de esquerda que no passado encabeçaram movimentos de massa, populares e reivindicatórios, como os que estão acontecendo hoje – e a História é testemunha.
Estou ciente de que dirão que este discurso é ultrapassado e que este modelo de política não atende mais aos anseios da maioria das pessoas; o que considerarei como sendo muito razoável. Sendo assim, sou obrigado a levantar uma questão: se tal modelo político está inadequado para os dias de hoje, qual modelo, então, o substituirá? Inclusive, o modelo de representação política que hoje é hegemônico, pelo menos no mundo ocidental, é o liberal, o da política representativa, calcado, formalmente, na existência do voto, parlamento e constituição, e que ideologicamente, em termos de origem, pertence ao campo da direita. [Questionável o que acabo de dizer. Se pensarmos, por exemplo, na participação jacobina – a esquerda radical da Revolução Francesa do final do século XVIII – na Assembleia criada pelos revolucionários franceses, poderemos dizer, outrossim, que a origem da democracia liberal, representativa e, portanto, indireta, também vem da esquerda. No entanto, além dos jacobinos lutarem politicamente nas ruas com os sans-culottes, numa perspectiva de democracia direta, no decorrer do século XIX em diante, foi a direita que passou a utilizar o modelo liberal de se fazer política de Estado; enquanto o socialismo, surgido com este nome exatamente no XIX e confiscando pra si o titulo de esquerda, começava a questionar este modelo liberal de se fazer política, propondo alternativas a ele.]    
Seria o caso, portanto, de questionarmos o modelo liberal de se organizar politicamente a sociedade? Ou, em uma postura que considero perigosamente niilista, questionaremos a própria política? A palavra “política” vem de pólis, que é “cidade” em grego. Na Grécia antiga, política nada mais era do que a prática dos cidadãos de decidirem diretamente sobre a organização de sua cidade; isto é, política era o cidadão, junto a seus vizinhos, organizando o lugar em que vive (em cidades como Esparta, por exemplo, esta política era oligárquica; enquanto que em outras, como Atenas, era democrática – podemos, ainda, levantar sérios questionamentos acerca do fato de quem podia exercer plenamente a cidadania nesta cidade era uma minoria; de qualquer maneira, o modelo ateniense é muito interessante historicamente). O que estes jovens estão querendo fazer é simplesmente isso: interferir diretamente na organização das cidades em que se manifestam, exigindo a eficiência dos serviços públicos das mesmas; ou seja, estão fazendo política – ainda que muitos deles abominem esta palavra tão desgastada.
Quanto aos partidos políticos, também muito rejeitados pelos manifestantes, temos que entendê-los, em se tratando do modelo liberal e excluindo os fisiológicos, como “agremiações” que comportam indivíduos e grupos que defendem interesses e ideias políticas em comum. Por sua vez, esses interesses, teoricamente, são ideologicamente preocupados com a coletividade e seu bem comum. Como o modelo político liberal trabalha com a perspectiva, dentre outras, da representatividade, basta escolhermos o partido em que as ideias melhor representam o que entendemos como sendo prioridade para a sociedade em que vivemos. Se estes jovens partirem para um segundo passo no avançar de seu movimento, passando a se organizar de fato, e criarem, por exemplo, algum tipo de organização minimamente formal para encabeçar negociações e ações junto às autoridades de Estado, estarão constituindo um “partido político” sem que este, necessariamente, tenha como inicial a letra “P” – irônico isso, não acham?
Concordo que há uma densa corrosão nas relações, mediadas pela política e seus partidos, entre o Estado e a população. Descrentes, as pessoas em geral parecem não se identificarem mais (e isso já algum tempo) com as instituições que dizem respeito a essas relações; e isso vem produzindo um acúmulo, represado, de insatisfações das mais variadas. O que estamos presenciando nos últimos dias é a erupção destes profundos descontentamentos. Esta corrosão, entretanto, não pode carcomer a nossa capacidade, racional, de analisar a dimensão das coisas. De perceber o quão perigoso é abolirmos de vez as instituições que, mal ou bem, ainda trazem alguma coisa, de democracia legalmente representativa, capaz de evitarmos que entremos, como no passado, em um estado de barbárie e selvageria. Querer achar – e não são somente estes jovens que compartilham deste “achar”; parece pertencer ao senso comum (ouvir um senhor, já com bastante idade, que estava em uma das manifestações, dizer que ele não é partido nenhum, e acrescentou: “eu sou Brasil!”) – que podemos abolir o conjunto institucional político intermediador dos nexos entre o clamor das massas e aqueles – ou aquele (o que é pior) – que em última instância tomam as decisões que organizam a nossa vida na esfera pública, é no mínimo temerário.
Esse tipo de relação costuma trazer em si a ideia, moral [prefiro a ética; mas esta é uma discussão muito longa], de que é necessário alguém no governo, “com vergonha na cara” (!), apto a tomar as decisões que são realmente indispensáveis, mas sem a participação desses políticos que estão ali só para “se dar bem”. Tal pensamento (explícito ou não por parte daqueles que nele depositam suas ideias políticas), no extremo, pode vir a validar o discurso de que não é necessária a participação política de todos; salvo em momentos, limites, em que é imperativa a manifestação das massas na exigência de que apareça alguém “com vergonha na cara” e tome as tais decisões imprescindíveis, ou para apoiar este “com vergonha” contra aqueles “sem vergonha”. Isso, de relação direta entre massas e líder, cheira-me a fascismo; e na sua versão mais cruel (se é que é possível ser mais cruel), a totalitarismo.
Também podemos citar os muitos analistas que dizem acreditar que, nos dias atuais (pelo menos a partir da década de 80 do século passado), estaríamos vivendo uma espécie de natureza ou situação sociocultural nova na história da humanidade: a pós-modernidade; em substituição à velha modernidade. Para esses analistas, muitos dos valores oriundos da modernidade inaugurada, sobretudo, com o iluminismo do século XVIII, o das “Luzes”, estariam caducos; estariam ultrapassados e, por isso mesmo, incapazes de darem conta do confuso mundo em que vivemos hoje. Esses valores modernos se resumem, basicamente, na razão humana; em sua propensão de explicar o mundo e ordená-lo. Preiteiam, esses intelectuais não modernos, que as coisas não funcionariam assim hoje; que a razão não é soberana na orientação de nossas vidas; que as coisas, na maioria das vezes, são dadas pelo acaso etc. As tentativas de entendimento do mundo social por grandes padrões ou arquétipos explicativos advindos da tradição moderna, segundo os pós-modernos, não seriam mais válidos. A História, como disciplina, a título de ilustração, não existiria enquanto uma ciência humana; sendo, na perspectiva pós-moderna, uma área da Literatura, já que não haveria um modelo ou método de pesquisa racional que fosse capaz de reproduzir o passado; o que produz o historiador seria uma narrativa somente.
Para a política, o que estamos definindo como “modelo liberal” é tributário das práticas e valores moderno-iluministas. Portanto, este modelo, na perspectiva analítica pós-moderna, não estaria mais adequado para organizar a nossa sociedade, pois esta estaria, exatamente, vivendo uma natureza ou situação sociocultural pós-moderna. (Para uma melhor apreciação do que seriam os fenômenos da pós-modernidade e da modernidade, aconselho os seguintes autores: Benedict Anderson, Ciro Flamarion Cardoso, David Harvey, Emir Sader, Eric Hobsbawm, Fredric Jameson, Manuel Castells, Perry Anderson, Raymond Williams, Renato Ortiz, Stuart Hall e Zygmunt Bauman).
Há também as análises, críticas contra o pensamento pós-moderno, que enquadram muitos dos novos movimentos políticos, contrários às forças que representam o capitalismo, como vinculados às “esquerdas pós-modernas”, pois, em resumo, rejeitam, em suas ações, a influência de modelos cujos valores são considerados como pertencendo à tradição moderno-iluminista. Tais movimentos trariam em si uma espécie de esquizofrenia, uma irracionalidade, vazia, que seria inócua, portanto, contra as forças que pretendem combater, já que lhes faltam os mecanismos racionais da tradição moderna etc. Talvez, os atuais movimentos que vemos hoje nas ruas do Brasil sejam desta tal “esquerda pós-moderna”. (Também para uma melhor apreciação desta crítica a esta esquerda, aconselho o livro, publicado pela Jorge Zahar e organizado por Ellen Wood e John Foster, Em defesa da História: marxismo e pós-modernismo. Especialmente a Introdução, de Aijaz Ahmad, “O que é a agenda pós-moderna”).
Voltando à questão do abandono, na política, das instituições que mediam as relações entre Estado e povo, ao contrário do que possa parecer, não estou querendo dizer que, necessariamente, o atual movimento, encabeçado a partir de São Paulo pelo MPL (Movimento pelo Passe Livre), vá descambar em formas de relações sociais de poder semelhantes ao fascismo; só acho que precisamos estar atentos... Bastar olharmos a História... Vi pela televisão, por exemplo, muitos jovens, apartidários, impedindo – até sendo violentos – a participação de outros jovens que carregavam bandeiras, vermelhas, de partidos de esquerda, como PSTU, PT, PSOL, PCdoB etc.; agindo, portanto, como a polícia, que muitas das vezes é truculenta e tenta impedir que realizem democraticamente suas passeatas e reivindicações.
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, todos sabemos, alguns jovens se aparelharam organicamente para lutarem contra um regime opressor, violento (sobretudo contra as classes populares; mas também contra a classe média, quando seus filhos mais radicais ousavam contrariar o regime) e a serviço do grande capital, nacional ou estrangeiro. Muitos desses jovens pagaram com a própria vida; mas contribuíram para que na década de 80 do mesmo século o Brasil reencontrasse a democracia. Os partidos rejeitados acima, em certa medida, são “herdeiros” legítimos desses jovens, e precisam, por conseguinte, serem respeitados (sem contar que a juventude que compõe estes partidos não está usando máscaras; ao contrário de muitos jovens partidários do apartidarismo, sejam eles “pacifistas” ou “baderneiros” – o anonimato, alguma das vezes, infelizmente, é um denominador comum entre estes dois grupos).
São muitas as variantes para se tentar dar conta de uma análise que ainda está por começar (e os intelectual das mais variadas especializações apressam-se, assim como eu, a apresentar seus pretenciosos diagnósticos nos meios de comunicação); afinal o movimento talvez esteja dando os seus primeiros passos. Acredito que o saldo – apesar do descontrole de uma minoria (mas isso não é inusitado, não é um privilégio único deste movimento) – será positivo. Está mais do que claro que nas próximas edições de seus livros didáticos de História, as editoras corram para incluir em suas páginas as manifestações ocorridas nestes últimos dias. Os professores de História do 3º ano do ensino médio – sobretudo dos cursinhos preparatórios –, com certeza, já começam a mencionar, ainda imprecisos e com certo receio, a possibilidade destes episódios já serem cobrados na prova do ENEM deste ano. E aí não tenho dúvida que uma das estratégias está sendo compará-los – em um link passado/presente – a semelhantes eventos que no passado de nossa História causaram, igualmente, impactos parecidos.
Ao escrever o final deste último parágrafo, ocorreu-me que, pelo menos, dois outros movimentos históricos no Brasil guardam muitas semelhanças com as atuais manifestações urbanas [mentira, já estava pensando nestes episódios antes mesmo de começar a escrever, só estava esperando o momento exato de encaixá-los; trata-se, portanto, de um recurso retórico meu]: A Revolta do Vintém, na cidade do Rio de Janeiro de 1879 (existiu outra revolta com o mesmo nome em Curitiba pelos idos de 1803; mas esta foi um pouco diferente – apesar ter tido, da mesma maneira, muito distúrbios), e A Revolta da Vacina, também no Rio de Janeiro, só que no ano de 1904 – portanto, uma no Império e outra na República.
Talvez comparar o que está acontecendo hoje com o movimento de 1879 seja o mais indicado, pois novamente trata-se da elevação do preço de embarque em um transporte público (ontem o vintém, os vinte réis dos bondes puxados por burros, hoje os vinte centavos); no entanto, ambas as revoltas são muito semelhante à atual “Revolta da Tarifa”. As três manifestações têm em comum, notadamente, a violência exagerada da polícia, o descontrole de elementos que “vandalizam” o patrimônio público e privado, a espontaneidade e a rejeição à “política formal”.
Gostaria de ressaltar, no entanto, que o que entendo como sendo o mais relevante a ser considerado como “semelhança”, não foi o objetivo – ou o título – que a primeira vista identifica cada um dos movimentos. Vejamos a Revolta da Vacina, por exemplo. O estopim foi, sem sombra de dúvidas, a lei da obrigatoriedade da vacina, proposta por Oswaldo Cruz e determinada pelo governo da “República Velha”; porém, a população menos favorecida da cidade estava, já há muito tempo, insatisfeita com um governo oligárquico e que não lhe abria nenhum canal de negociação política para que pudesse reivindicar suas necessidades básicas em termos de serviços públicos, como escolas e hospitais, ou mesmo coisas mais amplas, com leis trabalhistas etc. – sem contar que a Reforma Urbana do Rio de Janeiro, de Rodrigues Alves e Pereira Passos, embelezara a cidade sem, entretanto, beneficiar os mais pobres. Logo, a lei da obrigatoriedade foi só um pretexto; uma gota d’água em um copo já transbordando de desagrados vexatórios e insuportáveis. Hoje é a mesma coisa; o caso dos vinte centavos, na verdade, é somente um pretexto para que estes jovens gritem: BASTA!...             
Além destas intercessões, entretanto, verifico que existem algumas diferenças importantes. Primeiramente, creio que uma das principais diferenças seja o elemento de classe. Nas duas primeiras, o grosso dos manifestantes nas ruas era oriundo das classes populares (mesmo que na Revolta do Vintém as chamadas “classes médias” do Império tenham apoiado o movimento, quem realmente enfrentou as foças da ordem no centro da cidade foram os contingentes mais pobres). Já nas atuais manifestações contra as autoridades governamentais, percebo, posso está enganado, entre aqueles que compõem o grupo “pacifista” (em oposição àqueles que a mídia tem chamado de “vândalos”) um maior número de jovens de classe média (o que não descredencia o movimento como válido); com algumas exceções, é claro.
Toco agora num ponto que considero nevrálgico demais; precisando, portanto, ser tratado com muito cuidado, para não correr o risco de estar sendo levianamente preconceituoso [e é por isso que estou abrindo este novo parágrafo], como tenho visto por parte de alguns elementos dos meios de comunicação, que, no calor dos acontecimentos, deixam escapar seus “viciados” valores de classe. Em se tratando dos chamados “vândalos” ou “baderneiros”, percebo que a composição social é um pouco mais heterogênea. Tenho percebido elementos que me sugerem ser das classes médias misturados a outros das classes populares; menos nos fatos de violência, roubo e depredação ocorridos nas manifestações na Barra da Tijuca. Nestes, tudo parece indicar que foram adolescentes pobres dos bairros da Gardênia Azul e Cidade de Deus. Esse segundo grupo heterogêneo dos que se consideram “apolíticos” (o primeiro seria “os pacifistas”), “os vândalos”, surgem do nada e agem, a princípio, desordenadamente, sem uma liderança orientadora e constante, como que seguissem um sentimento violento de destruição a tudo que pareça pela frente (pode ter também, neste grupo menor de pessoas, algum tipo de violência com objetivos políticos e orquestrada por jovens de organizações de extrema direita, como os neonazistas, por exemplo).
O comportamento desses nossos “vândalos” é muito parecido ao manifestado em Paris, no ano de 2005, por jovens de suas periferias; que, em flagrantes acessos de uma ira incontrolável, invadiram as ruas da capital francesa incendiando carros, destruindo lojas etc. Esses “vândalos” franceses, em sua maioria, descendem de imigrantes oriundos das ex-colônias francesas, sobretudo africanas; e, portanto, além de pobres, são negros e mestiços.
Lembro-me perfeitamente que na época intelectuais de fama internacional, como sociólogos, dentre outros, analisavam que tais manifestações espontâneas, violentas e não liderada por partidos, eram resultado de uma aguda e colossal insatisfação a tudo que representa a política formal da França e a prosperidade da classe média branca daquele país. A razão desta insatisfação se deu por um sentimento, pertinente, de que a classe média francesa e sua política excludente não os representam, não se preocupam com eles e os renegam a um limbo periférico, que além de geográfico é também econômico, social e cultural. Então porque preservariam aquilo que não lhes diz respeito; mas do que isso, não os respeita, não os protege, não os ajuda, ignora-os e lhes prejudica (basta ver como a polícia parisiense os trata). Podemos dizer – e é o que se costuma dizer com muita propriedade – que se trata também de jovens sem perspectivas para o futuro e que por isso agem como se nada tivessem a perder (e como resultado de políticas neoliberais, não têm mesmo).
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, famoso por suas versões “Líquidas” da Arte, do Amor, do Tempo, da Modernidade, da Vida, do Medo etc., em entrevista ao Jornal O Globo, em Agosto de 2011, disse, a respeito de distúrbios semelhantes ocorridos em Londres, cujo foco foi o saque, por parte de jovens, em lojas de marcas e grifes importantes, que o ocorrido foi uma espécie de “motim de consumidores excluídos”. Sintetizando (e interpretando de forma, digamos, um pouco “livre” a análise de Bauman), em uma sociedade, individualista, que valoriza sobre maneira uma cultura do consumismo; mas, ao mesmo tempo, com políticas econômicas que potencializam a exclusão, jovens socialmente à margem deste consumo foram às “compras” a sua maneira, que prescinde dos valores morais construídos pela sociedade moderna. O parecer de Bauman pode ser agregado, talvez com algumas ressalvas, ao mosaico de explicações sobre o comportamento, específico, de alguns poucos jovens brasileiros nos distúrbios dos últimos dias, especialmente nos ocorridos na Barra da Tijuca.
Temos, para o exame dos problemas que as convulsões sociais provocadas por nossos jovens estão nos causando, muitas possibilidades. Falta de perspectiva para o futuro, em função de que a sociedade não estaria oferecendo a possibilidade de existência desta perspectiva; jovens sócio e economicamente excluídos de consumirem em uma sociedade cujos principais apelos midiáticos são para o consumo; desprezo a um modelo político que acreditam que não os representa; uma intensa insatisfação com a situação do pais (muitos político corruptos, serviços públicos ruins, passagens caras etc.), que no seu extremo se apresenta como uma raiva incontrolável e destruidora; a existência, hoje, de uma “condição pós-moderna” (esta explicação é a que menos me contempla); os atuais movimentos seriam da “esquerda pós-moderna” (e se forem, não acredito na capacidade de transformação social desta esquerda) etc., etc., etc...
A dificuldade, no entanto, que se apresenta aos nossos olhos encontra-se exatamente nos primeiros vocábulos do parágrafo acima: “problema”. Não podemos encarar tais manifestações como um “problema”; nem mesmo os quebra-quebras ocorridos. Tenho consciência de que era melhor que as amostras de “vandalismo” não tivessem acontecido; mas, como já adiantei mais acima, infelizmente não tem jeito – é mesmo impossível que não tivessem acontecido. Todas as grandes manifestações físicas e populares, no tempo/espaço, inclusive as revoluções, não ocorreram sem aqueles indivíduos e grupos que, mesmo sendo minorias, saem do controle e assustadoramente exageram em suas ações violentas. Aproveitando-me de uma figura de linguagem já explorada por um eminente técnico de futebol brasileiro (senão me engano), não dá para fazer uma omelete sem quebrar os ovos...
Esses jovens, em sua maioria, estão nos dando uma lição. Mesmo com a minoria “vândala” e com o sentimento apolítico da maioria (e quiçá, especularei, estes jovens não tenham lideranças formais por exatamente temerem que estas se tornem, com o tempo, devido à popularidade que a liderança pode lhes proporcionar, políticos tradicionais), vejo luz no fim do túnel. Pego o exemplo de minha filha, que foi às passeatas no centro do Rio sem pedir minha autorização, mesmo sendo menor-de-idade. Confesso que o meu primeiro sentimento foi o de pai, e pensei em proibi-la; mas o cidadão político e professor de História, que inclusive foi lembrado desta condição pela própria filha, acabou falando mais auto (e o pai ficou com o coração na não de tanta preocupação – lembrei-me da peça do Brecht, “A Mãe”, em que em tempos revolucionários uma mãe é contra a revolução porque teme pela integridade física de seus filhos. Nesta peça, a mãe é a vilã paro o autor; entretanto, o público, identificando-se com o sentimento materno, a elege como heroína).
Minha filha, como a maioria de sua geração, nunca tinha se interessado muito por política; mas ultimamente a coisa tem mudado lentamente. Disse, nas últimas eleições, que simpatizava, mesmo não sendo filiada, com o Freixo do PSOL, e me criticou por não pensar a mesma coisa. E, no que diz respeito aos atuais episódios no centro do Rio, ela escreveu uma redação no cursinho pré-vestibular sobre o que intensamente vivera nas manifestações de rua, que foi lida pela professora para toda a turma. Minha filha tá toda orgulhosa. Pela redação? Também. Mas especialmente por sua participação, decisiva, na História do país. Sim, vejo luz no fim do túnel...

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Muito Obrigado pela consideração, Valter Mattos.